No tempo de Moisés, no tempo dos
Profetas, no tempo de Jesus.
Quando a busca
do poder não tem limites, são muitas as vítimas, se entra na espiral da
violência e os gritos se fazem ouvir. Mas, muito boa gente não quer escutar. Os
seus olhos ficam como vendados e os seus ouvidos ficam como surdos a tanto
clamor: uma defesa contra o sentimento de impotência ou cumplicidade que nos
fere, e incomoda, que nos faz mal e por isso se vão encontrando muitas e
variadas formas de evitar ver e escutar.
Não foi
assim com Moisés. Ele, provavelmente, com uma vida cómoda, com um futuro
assegurado, de fácil acesso ao ter e ao poder, numa vida de Palácio, rompe os
muros e repara na situação de escravatura a que estava submetido o seu povo;
foi sensível, os seus olhos e o seu coração se abriram.
Moisés não
aguentava continuar a ver tanta opressão, tanta injustiça contra os seus irmãos
de raça.
Terá
percebido que o uso da violência como forma de luta não era solução.
O seu retiro
para os subúrbios, junto a uma comunidade seminómada, o seu contacto com os
simples e os humildes vai-o conduzindo à descoberta da bondade, da ternura e
misericórdia de Deus, o Deus único e verdadeiro.
Ao mesmo
tempo que cresce no seu íntimo, a preocupação pelos seus irmãos. Um fogo, uma paixão pelo seu povo explorado,
violentado, o abrasa. Passa a entrar Moisés num terreno sagrado: O seu povo tão
fragilizado, é o povo de Deus. O Deus vivo e verdadeiro que lhe faz sentir que
deve partir - não pela violência, não pela força -; deve partir para ser a Sua
boca, os Seus pés, as Suas mãos.
Deus viu
muito bem a miséria do Seu povo, viu a opressão com que os egípcios os
atormentavam, ouviu o seu clamor contra os seus opressores e conhecia os seus
sofrimentos e por isso os ia libertar. Mas precisava dele, do seu conhecimento,
da sua capacidade de intervir. Contudo, só poderia intervir em seu nome. Seria
Deus em Moisés a pensar, a descobrir estratégias, a agir. Fora d’Ele, tudo
seria um fracasso.
E Moisés de
um menino de Palácio, de um rebelde assassino, se transforma para os Judeus no
grande Líder, no “servo de Deus” e “Pai de todos os Profetas”.
Se sucedem a
Moisés tempos de democracia - ausente de um poder
centralizado, totalitarista - com autonomia produtiva, sem impostos, propriedade
de todos e para todos, leis comunitárias e uma fé viva no Deus Libertador. É o
tempo dos Juízes: Josué, Débora, Baraque, Gedeão, Jefté, Sansão… (Jz 5: Cântico
de Débora; Ex 20,1-21: Mandamentos; 20,22-23,9: Código da Aliança; Sl 19,2-7;29; 68,82;136); Js 1-12; 23-24; Dt
31-34; Eclo 46; Ex 19-24; 32-34; Nm 31-36; Js 13-19; Jz 1-18).
Mas a
tentação do ter, que dá poder, está sempre presente e com a opção pela
Monarquia vem também a acumulação de poder e de terras, o aumento de
contribuições, os trabalhos forçados, a resistência dos agricultores, guerras
de conquista, cultos estrangeiros, crescente idolatria, decomposição moral e
religiosa, divisão do Reino, injustiças, duros impostos, ameaça de países
estrangeiros (Assíria), alianças políticas, sincretismo religioso, progressiva
decadência, corrupção, desintegração de instituições, endividamento sem saída,
ideologias justificadoras da opressão, destruição de cidades como Nínive e
Jerusalém, deportações para o exílio onde passam a viver em subúrbios, trabalhos
forçados, crise de identidade.
É nestes
contextos que surgem os Profetas como Elias que enfrenta o sistema do Rei
Acabe, Eliseu, Amós no Reino de Israel, cuja capital é Samaria. E em Judá,
concretamente em Jerusalém, surge o grande Isaías, Sofonias e outros. Na grande
crise de profunda decadência e desintegração, temos Jeremias, que denuncia
fortemente as atitudes do Rei, profetiza contra a sua ganância, contra o
esbanjamento de dinheiro em construções luxuosas (Jr 22,3.13-17. Atira-lhes em
cara que só visa o lucro, que derrama o sangue do inocente e pratica a opressão
e a violência. Também se torna, o Profeta, um adversário dos sacerdotes de
Jerusalém porque condena a superestima do culto e do templo (Jer 7,3-15.21.26),
ele mostra que a Aliança com Deus é muito mais ampla e comprometedora do que o
simples cumprimento das prescrições e leis do culto. Além da fidelidade a Javé,
trás consigo o compromisso de solidariedade com os irmãos (Jr 7, 21-28).
Os
verdadeiros profetas, são homens e mulheres de Deus que não temem denunciar
claramente os grupos dominantes da sociedade do tempo:
Autoridades,
magistrados, latifundiários, políticos. Chegam a ser duros, irónicos. Porque,
um fogo os queima e todas as energias estão na defesa apaixonante dos órfãos,
das viúvas, dos oprimidos, do povo explorado e desgovernado pelos governantes.
Não temem igualmente denunciar a máscara da religião que encobre a injustiça
(Is 3,16-24; Am 4,1-3; Is 1, 10-20; Am 2, 6-16; 4, 4-5; 5, 21-27). Daí as
ameaças de morte, os açoites e a prisão… (Jr 19, 14-20; 16,11; 37,15-16;
37,15-17; 38,4-6).
Todos eles
vivem uma profunda experiência de Deus, não de um deus qualquer, mas de Javé, o
Deus que está no meio do povo, o Deus libertador, o Deus vivo e verdadeiro,
todos eles vivem uma experiência profunda da realidade do povo, do povo de
Deus, os pobres, os oprimidos, os marginalizados. A presença de pessoas ou
grupos marginalizados era o sinal de que algo estava errado… é conhecida a
expressão de Dt 15, 4 e 7: “Entre vós não
pode haver pobres, nem mesmo um só”.
A sua ação,
que brotava da sua experiência de Deus e da Realidade, era clara e visava três
frentes: a
mudança de estruturas injustas, a transformação da sociedade denunciando
com claridade as injustiças e apontando as causas - pelas suas denúncias
procuram criar novas leis como a lei do Ano Jubilar que pretendia criar uma
estrutura agrária mais justa; a mudança
nas relações, a renovação da comunidade através do caminho da
solidariedade: … mas como não faltam indigentes na terra… eu te ordeno “Abre a tua mão em favor do teu irmão, do
teu pobre e do teu indigente em tua terra… pois no meio de ti não haverá nenhum
pobre” (Dt 15, 11.4); a mudança no
modo de pensar, o grande desafio do profeta: recrear a consciência.
Porque, no
dizer de Carlos Mesters, a injustiça básica é a consciência roubada dos pobres.
A eles lhes foi imposta uma consciência de inferioridade. O sistema injusto dos
reis fez do pobre um ser inferior, um preguiçoso, um pecador que não merecia
vida melhor que aquela que tinha, ele, o pobre, era o único culpado da sua
pobreza. O pobre, assim desumanizado, não encontra saída, já nada tem a perder…
já não existe a confiança… não adiante mais continuar a gritar pedindo ao rico
ajuda.
É aqui que
cabe a voz do profeta que não apenas denuncia as injustiças e os erros, não só
estimula o povo para a solidariedade, mas também e sobretudo, anuncia a certeza
central da fé: “Deus está no nosso meio!
Ele ouve o nosso grito!” E o povo motivado pelos profetas passa a gritar
para Deus porque agora sabe que Deus escuta o seu clamor (Ex 6,2-8; 3, 7-15) É
desta certeza de que Deus está com ele, e que o ama que nasce no pobre uma nova
consciência de gente, de filho de Deus, consciência da sua própria dignidade e
missão. É como uma nova criação que quebra o círculo vicioso da ideologia
dominante (Cf Gl 6,15; 2Cor 5,17).
São três
caminhos num só, porque Justiça sem solidariedade e sem mística, torna-se mera
ação política; Solidariedade sem Justiça e sem Mística torna-se mera
filantropia e Mística sem justiça e sem solidariedade, torna-se piedade
alienante.
Jesus de
Nazaré, no tempo de Herodes Antipas, vive uma
realidade idêntica à de anteriores profetas, quer a nível social, quer a nível
político e religioso. Socialmente se verificam os grandes contrastes sociais,
latifúndios, exploração dos trabalhadores, contribuições sempre a subirem,
marginalização, exportação de alimentos: fome, confusão do povo, insurreições,
revolta…
Ele, Jesus,
como os verdadeiros profetas de Israel, não faz parte da estrutura política nem
do sistema religioso. Não é nomeado por nenhum poder. A sua autoridade não lhe
vem da instituição, não se baseia nas tradições religiosas. Provém da sua
experiência de um Deus empenhado em conduzir os seus filhos e filhas pelos
caminhos da justiça.
Na Galileia, Herodes Antipas e os
poderosos de Séforis e Tiberíades exploram os campesinos das aldeias, sem ter
consciência de estar a tirar o pão aos pobres. Por outro lado, há muito tempo
que os dirigentes religiosos de Jerusalém se desentenderam do sofrimento das
populações. Não se sabe como, nem de onde; poderia brotar uma esperança para os
pobres e para essa sociedade indiferente que os abandona à sua sorte.
E a primeira coisa que Jesus vai fazer, tal como fizeram os autênticos
profetas, é romper esse mundo fechado introduzindo uma novidade. “Deus, já está aqui com a sua força
criadora de justiça… já está a abrir caminhos entre nós para humanizar a
história”. O mundo querido por Deus vai mais além da tirania do Império e mais além
do estabelecido pela religião do Templo.
Segundo o teólogo António Pagola, se
pode dizer que Jesus irrompe na história como
uma chamada a viver de maneira alternativa experimentando a Deus, Mistério
último da vida, como uma Força que nos está atraindo para um mundo mais humano
e mais ditoso.
Jesus
capta e vive a realidade insondável de Deus como um mistério de compaixão. É
precisamente esta compaixão de Deus a que atrai Jesus para a vítimas inocentes:
os maltratados pela vida ou pelas injustiças dos poderosos. É a compaixão de
Deus a que torna Jesus tão sensível ao sofrimento e à humilhação da gente. A
Sua paixão pelo Deus da compaixão traduz-se em compaixão pelo ser humano.
Hoje
estamos submersos talvez na maior crise da história, porque a natureza também
está ferida de morte e o capitalismo selvagem está afetando todo o planeta.
Somos testemunhas das mesmas injustiças, guerras, violências, gritos de dor,
fome, doença, desespero, destruição. Recordo
muitas vezes, na minha inesquecível ida a um país africano, o ter visto grandes
extensões de terreno cercado, moradias de luxo, grandes condomínios fechados… e
ao mesmo tempo famílias, multidões, em condições sub-humanas sem um palmo de
terra. Entrei em casas, escutei silêncios de homens
mutilados, cegos… e muitas mulheres, confessando a sua pobreza e dizendo irem
ao lixo buscar o que outros deitam fora, que não podem trabalhar a terra,
porque a não têm e comprar é muito caro, que carregam de longe a água porque os
homens não se unem para abrirem um poço comunitário… “Ai daqueles que juntam casa com casa e emendam campo a campo, até
que não sobre mais espaço e sejam os únicos a habitarem no meio do país”. (5,8).
Mas, não precisamos de ir tão longe. Convivo todos os dias num bairro municipal – ilha
rodeada de prédios de luxo - com cerca de 800 famílias, onde muitas se vão
progressivamente deteriorando, porque as suas necessidades básicas não estão
asseguradas, a luta pela subsistência, no meio da rejeição, da indiferença, do
abandono, tem vindo a gerar um maior empobrecimento ao nível dos valores: a
desconfiança, a desilusão, a mentira, o roubo, a violência em casa e fora dela.
Realidades
que contrastam excessivamente com as imensas famílias que habitam os prédios de
luxo e os condomínios fechados do outro lado da estrada.
Quando deste lado não tens o necessário para viver uma vida digna
e do outro lado vês uma piscina para cada prédio, um Ferrari que passa e excita
as crianças que a gritos brincam no jardim, grades de ferro que resguardam os
moradores e a presença de seguranças… muitos sentimentos perpassam pelas mentes
dos dois lados: a desconfiança de um lado e a revolta do outro.
Há dias aceitei o convite da OC (Obra Católica) para um almoço e
debate juntamente com os sem casa ou em risco eminente de ficarem sem ela,
devido à inesperada demolição das barracas no bairro de Santa Filomena.
Percorri o bairro, reparei nas casas/barracas sem condições, nas pessoas em
cujos rostos se viam as marcas de muita dor e privações, crianças em dia de
chuva e frio mal vestidas, conheci a Dona Branca cozinhando torresmos na rua, o
seu ganha-pão e a sorte de muitos que na hora do seu almoço por 40 cêntimos
compravam a deliciosa refeição. Esta mulher, sem marido e sete filhos, também
ela, espera pelo dia em que ficará sem casa e sem direito a um realojamento… Mas como vai resolver? – Perguntei-lhe –
“Eu não sei mas Deus é Pai, Deus é Pai…” eu me perguntava: onde estão profetas como o Isaías
que denuncia o comportamento dos ricos e latifundiários, dos que vivem em
grandes festas custeadas pelo trabalho dos pobres, dos que exploram o povo
negando-lhes a justiça e dos que se fazem grandes e importantes vivendo em
grandes banquetes (5, 8-24)? E percebi que no meio do povo, havia gente jovem,
predominantemente mulheres, implicadas na defesa destes imigrantes; respondiam
com serenidade às nossas perguntas. Elas manifestavam indignação por um governo
que mentia perante a ONU, uma câmara Municipal que se fechava ao diálogo, e
ainda a queixa do pároco que também fechava o seu coração dizendo que nada
tinha a ver com isso. Dizia ser injusto que pessoas nascidas desde há 22 anos
não tenham direito a um teto. Conhecendo caso a caso, elas sabiam da situação
degradante destas pessoas e famílias. Era urgente intervir…
As crises, são tempos privilegiados
para um chamamento a viver o essencial. E são muitas hoje as experiências e os
apelos a este retorno: Temos o caso da Comunidade de TAMERA no Alentejo, um centro internacional de pesquisa para a Paz
fundado em 95, cerca de 150 pessoas de várias nacionalidades a viverem um
estilo de vida alternativo onde estão presentes a dimensão ecológica, a
dimensão espiritual, humana e da solidariedade. Para reforçar os laços
comunitários, os habitantes de Tamera começam o dia com uma dança ao ar livre e
uma sessão espiritual, em que todos, sentados em círculo, podem exteriorizar
sentimentos, pondo de parte eventuais intrigas e cimentando o espírito de
entreajuda. As portas das casas não se trancam e os forasteiros são recebidos
sempre com um sorriso e uma mão estendida. À hora das refeições, agarram-se as
mãos em jeito de agradecimento pela comida que a terra lhes dá.
Também no Alentejo uma família alemã da “Ilha do paraíso”
crudívora vive uma ecologia radical onde só vigoram as leis de Deus e da
Natureza;
Marinaleda
em Espanha onde há pouco, o famoso carismático Presidente da Câmara apareceu na
TV a falar das suas práticas gandihianas de não-violência-ativa contra a
difícil situação da Andaluzia. Falou com muita clareza, mostrando a hipocrisia
deste sistema que temos.
Formar hoje exige a implicação nas realidades
onde se dá a demissão dos responsáveis entregando as vítimas do sistema à sua
própria sorte. Formar hoje implica saber permanecer sempre com o olhar e o
coração na realidade e ao mesmo tempo na Palavra de Deus contextualizada.
Formar hoje implica abrir-se ao novo, ao diferente.
JULIA BARROSO- Comunicação Curso de Formadores - CIRP.
Fátima 2013)