domingo, 2 de fevereiro de 2014

O FENÓMENO DO TRÁFICO HUMANO


“… e já não somos capazes sequer de nos guardar uns com os outros”

Já são hoje, felizmente, muitas as ações formativas e informativas, os artigos nos jornais, os filmes, as novelas, os testemunhos no youtube, muitas pessoas a dizerem que conhecem este antigo/novo fenómeno do tráfico de pessoas, da nova e vergonhosa escravatura moderna. Os Governos de muitos países têm planos de luta contra o tráfico de pessoas, casas abrigo para as vítimas; são conhecidos números de pessoas traficadas, sabe-se que são biliões de dólares ganhos com um negócio ilegal tão rentável que parece aumentar ano após ano. Mas não basta ter informação e formação, nem só saber sobre o tema.

O Papa Francisco é para nós, hoje, um exemplo vivo de boas práticas. Ele não se fica com a leitura de notícias alarmantes nos jornais, não se limita a dizer palavras, salta para o terreno e toca a realidade; deixa-se tocar por ela, deixa-se interpelar e interpela-nos. O caso de Lampedusa volta constantemente ao pensamento de Francisco “como um espinho no coração que faz doer”, confessa-nos ele. E… sente o dever de ir até lá “para rezar, para cumprir um gesto de solidariedade”, mas também, diz o Papa,para despertar” e, sobretudo, “provocar as nossas consciências a fim de que não se repita o que aconteceu”, a fim de quetodos reflitam e mudem concretamente certas atitudes” (citações, anteriores e seguintes, do discurso do Papa em Lampedusa).
 “Muitos de nós – e neste número me incluo também eu”, continua o Papa Francisco – “estamos desorientados, já não estamos atentos ao mundo em que vivemos… e já não somos capazes sequer de nos guardar uns com os outros”.
“Onde está o teu irmão? A voz do seu sangue clama até Mim... Esta não é uma pergunta posta a outrem; é uma pergunta posta a mim, a ti, a cada um de nós. Estes nossos irmãos e irmãs procuravam sair de situações difíceis, para encontrarem um pouco de serenidade e de paz; procuravam um lugar melhor para si e suas famílias, mas encontraram a morte. Quantas vezes, outros que procuram o mesmo não encontram compreensão, não encontram acolhimento, não encontram solidariedade! E as suas vozes sobem até Deus!”
O Papa Francisco não vai até lá, a Lampedusa, para falar sem saber do que fala. Antes de falar, escutou uma vítima: “Recentemente falei com um destes irmãos. Antes de chegarem aqui, passaram pelas mãos dos traficantes, daqueles que exploram a pobreza dos outros, daquelas pessoas para quem a pobreza dos outros é uma fonte de lucro. Quanto sofreram! E alguns não conseguiram chegar.”
“Quem é o responsável pelo sangue destes irmãos e irmãs? Ninguém! Todos nós respondemos assim: não sou eu, não tenho nada a ver com isso; serão outros, eu não certamente. Mas Deus pergunta a cada um de nós: «Onde está o sangue do teu irmão que clama até Mim?»”
“«Quem de nós chorou por este facto e por factos como este?» Quem chorou pela morte destes irmãos e irmãs? Quem chorou por estas pessoas que vinham no barco? Pelas mães jovens que traziam os seus filhos? Por estes homens cujo desejo era conseguir qualquer coisa para sustentar as próprias famílias? Somos uma sociedade que esqueceu a experiência de chorar, de «padecer com»: a globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar!”
E lá vamos continuando muitos e muitas de nós a viver como se fôssemos “bolas de sabão, insensíveis aos gritos dos outros…: estas são bonitas mas não são nada... Habituamo-nos ao sofrimento do outro, não nos diz respeito, não nos interessa, não é responsabilidade nossa!”

Para contrariar esta tendência, a CAVTP (Comissão de Apoio às Vítimas de Tráfico de Pessoas) da CIRP (Conferência dos Institutos Religiosas em Portugal) tem vindo, desde há cerca de oito anos, a desenvolver um Projeto com a missão de sensibilizar, em primeiro lugar a Vida Religiosa, para esta realidade tão cruel e tão escondida. Doze irmãs de diferentes congregações e uma leiga têm vindo a fazer uma aprendizagem que as leva a detetar no terreno realidades de alerta e tentativas de sábia intervenção.
O seu trabalho em parceria com outras Instituições tem vindo progressivamente a tornar-se mais significativo porque tem o cuidado da atenção aos sinais e implicação no terreno. Esta Comissão faz parte da REDE TALITHAKUM – uma rede internacional de irmãs que pelos cinco continentes vêm sendo uma voz de ALERTA, o anúncio de uma vida religiosa em profecia. Muitas são já no mundo as Congregações Religiosas e as ONGS que se dedicam a esta causa. Mas torna-se urgente que todas as pessoas sintam esta realidade “como um espinho no coração que faz doer” e sejam impelidas a sair da sua “bola de sabão”.

É um tema demasiado sério e não deveríamos dormir descansados, sabendo que muito perto de nós, talvez no andar ao lado, na casa de alterne por onde passamos frequentemente, nas ruas da nossa cidade, ao longo de muitas das nossas estradas… há mulheres, que foram enganadas e agora são forçadas a vender o seu corpo. Muitas nem elas têm consciência do seu ser de vítimas do crime do tráfico… resignam-se à situação para não caírem na desestruturação de personalidade…  elas chegam do Leste, da África, da América Latina, nomeadamente do Brasil, e até da Ásia.
As redes criminosas são flexíveis e mudam facilmente as suas rotas, a sua metodologia e estratégias. Tais mulheres, vítimas do Trafico para fins de exploração sexual, podem estar legais, mas geralmente não possuem os seus documentos, elas temem a polícia e não são fáceis em denunciar os traficantes. Estes podem ser seus amigos, familiares ou outras pessoas significativas ou podem estar de tal modo ameaçadas que evitam falar a quem quer que seja… Se elas estão a trabalhar para contraírem uma dívida, se estão a ser muito controladas e não têm liberdade de movimentos ou de mudanças de emprego, são sinais de alerta...
Muitas gostariam de poder encontrar alguém que as salvasse de um verdadeiro inferno… Não é difícil a polícia entrar num monte alentejano, onde provavelmente existe alguma mulher que está a ser vítima de maus tratos, de exploração sexual, sem liberdade de movimentos; ou em um qualquer andar onde os clientes entram e saem com descrição. Mas o facto é que ela não vai lá se não for alertada. Não é fácil descobrir que em qualquer salão de massagens, ou alterne, onde tudo está legalizado, que aquelas mulheres aparentemente felizes e livres podem ser vítimas do Tráfico.

É muito importante conhecer a problemática, estar atentos e criar redes tão inteligentes, dinâmicas, flexíveis quanto a dos traficantes. Sentimos que é urgente reinventar novas formas de pastoral – a pastoral da rua, a pastoral da noite. Exige preparação e competência, muita formação nesta matéria, prudência e delicadeza, muita coragem, sobretudo uma grande paixão pelo Reino.
Júlia Barroso, stj


segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

HÁ SEMENTES DO VERBO!

Em tempos, o Natal evocava-me celebração, festa, luzes, família, presentes… Hoje, entre as pessoas e famílias mais desfavorecidas, e como consequência, também eu algo mais desfavorecida, remonta-me de modo mais vivo à Gruta de
Belém, lugar sagrado, onde para se entrar há que BAIXAR-SE. Essa é a experiência do Natal: Deus baixa-se, encarna-se, toca a carne, faz-se um com os sofredores da História. Celebrar o Natal é precisamente viver dia-a-dia em sintonia com Jesus que nasceu numa gruta, viveu num pobre e desconhecido bairro a sul da Palestina e que, já adulto, consciente da realidade, fez a opção de anunciar a Boa Notícia do Reino nas periferias da sua terra aos pobres mais pobres.
 Hoje, aqui, nesta pequenina “ilha”, não contam as celebrações litúrgicas nas igrejas que estão “longe”, as luzes não são tão cristalinas e exuberantes nas casas, as festas à volta da mesa são sem luxos nem etiquetas. As prendinhas para as crianças à volta do pinheiro são modestas. Há famílias que se juntam, vizinhos que se convidam entre si, há calor e festa. Há convívio e crescente iniciativa no clube desportivo. Também existem famílias que não podem celebrar como noutros anos, porque as suas vidas se desmoronaram por diversas razões. Para uns e para outros, o verdadeiro Natal ainda não aconteceu. O Jesus humano e terreno ainda não é conhecido; a Boa Notícia do amor, da ternura e misericórdia ainda não penetrou nos corações afligidos, ou endurecidos por histórias dramáticas. Mas há sementes do Verbo, há rebentos de esperança, há pequenos/grandes sinais!
Jesus precisou de viver cerca de 30 anos no anonimato, dentro de um dos bairros mais pobres da Galileia. Os nossos bairros periféricos necessitariam de seguidores radicais de Jesus de Nazaré, vizinhos entre vizinhos, a revelarem o rosto materno e paterno de Deus, a pacientemente caminharem ao lado, aprendendo e partilhando o que de melhor levamos dentro: o amor, a ternura e a misericórdia de Deus; também a indignação, a luta pela justiça, a denúncia da indiferença perante os mais débeis e frágeis.
Formar nas novas gerações uma consciência crítica da realidade, fortificar vontades com capacidade de autonomia apesar das famílias desestruturadas, apesar dos ambientes pesados, aparentemente a caminho da degradação, é todo um desafio.
Entretanto, vamos celebrando os pequenos/grandes gestos e acontecimentos dessa vida divina que vai acontecendo: de entre a meia centena de crianças e adolescentes, que um dia e outro dia entram no “Espaço Aberto”, duas dezenas estão crescendo em grupo, os mais velhos vão dando sinais de que vale a pena não desistir, não excluir, não condenar, não desrespeitar – vão assumindo gestos que nos vão surpreendendo. Já vão sendo, alguns, “apóstolos” na família e na comunidade; já não passa um Natal sem algum gesto simbólico assumido pelo grupo em relação às famílias sozinhas ou em sofrimento.
Uma pequena e frágil comunidade de fé reúne-se para celebrar a Eucaristia dominical. O Natal, é mais festivo, e o grupo dos “Rebeldes” animam a festa.
Foram eles, os Rebeldes, que, sem se aperceberem, provocaram uma revolução: os prédios, há anos degradados pela sujidade e destruição, estão aos poucos apresentando um novo rosto. Tudo começou por uma ideia, um gesto dos mais novos. Depois o tempo foi-se encarregando de que os vizinhos se fossem unindo, e aí estão surgindo surpresas: formação de condóminos, maior segurança, maior higiene, mais alegria.
Quero recordar aqui as palavras proferidas pelo Papa Francisco no Brasil, dirigidas aos Bispos, Sacerdotes, Religiosos e Seminaristas: “O ‘permanecer’ com Cristo não é isolar-se, mas é um permanecer para ir ao encontro dos demais. Vem-me à cabeça umas palavras da Bem-aventurada Madre Teresa de Calcutá: «Devemos estar muito orgulhosos da nossa vocação, que nos dá a oportunidade de servir Cristo nos pobres. É nas favelas, nos «cantegriles» nas Vilas miséria, que nós devemos ir/procurar e servir a Cristo. Devemos ir até eles como o sacerdote se aproxima do altar, cheios de alegria». Não podemos ficar encerrados na paróquia, nas nossas comunidades, quando há tanta gente esperando o Evangelho! Não se trata simplesmente de abrir a porta para acolher, mas de sair pela porta fora para procurar e encontrar. Decididamente, pensemos a pastoral a partir da periferia, daqueles que estão mais afastados, daqueles que habitualmente não frequentam a paróquia. Também eles são convidados para a Mesa do Senhor”.
Gostaria de convidar algumas pessoas que se sintam chamadas a responder a este apelo do Papa, a virem até cá, para uma ousada análise da realidade das nossas periferias, a nível económico, social, político e cultural. Ver, julgar e agir “pisando chão”, como dizem os nossos irm@s brasileir@s. Pode ser esta, quem sabe, a sua oportunidade para passar a pertencer a uma comunidade de fé consciente e conscientizadora, que desde a periferia e na periferia pensa a sua pastoral.

Júlia Barroso, stj

terça-feira, 29 de outubro de 2013

A EXPERIÊNCIA DO DEUS DE JESUS

O Princípio e Fundamento no Seguimento de Jesus. O salto para a fé.

Experiência de Deus! Como sabemos tratar-se de uma experiência de Deus? E de que Deus podemos estar a falar? Há cerca de um mês, precisamente a 24 e 25 de Dezembro, caminhando em direção ao Hospital passo pelos meus vizinhos e amigos, foram cerca de meia dúzia, um deles era o casal JL. Uns me vêm desejar as Boas Festas, outros, vou eu ao seu encontro para uma rápida saudação, enquanto não chega algum carro que lhes possa dar sorte com mais uma moeda.
O trabalho de arrumador é bem mais duro do que porventura possamos pensar: para além de passar a ser ostracizado pelos outros membros da comunidade e pela sociedade em geral, implica o levantar muito cedo, apanhar o calor do sol de verão ou o frio e a chuva de inverno todos os dias do ano, sem direito a férias nem subsídio de Natal. Reparar nos seus rostos, juntando ao de outros em outros dias e outros lugares, incluindo algumas mulheres e vários pequenos adolescentes, em dia de Natal, entro na Igreja da minha paróquia - lá bem distante - para a Eucaristia. Muitas luzes, o presépio me choca pela sua inefável beleza, brancura, luminosidade, riqueza… as pessoa… um outro mundo… dois mundos tão perto e tão longe… as lágrimas me correm pelas faces sem eu poder controlar… me surgem tantos rostos, tantas histórias da gente do meu bairro… a parecerem-se aos pastores que ali no presépio não estavam representados. Que longe está a nossa Igreja deste mundo dos empobrecidos e marginalizados!…


Há uns meses atrás a minha coordenadora Provincial acabava de ler um livro e queria que eu lesse, a ela lhe fez lembrar muito a nossa comunidade (Do Champanhe aos Salmos. De Wall Street aos Bairros norte de Marselha. Edições Paulinas 1910.) Trata-se de Henry Quinson que de financeiro bem-sucedido, passando por monge trapista, sempre inquieto e na busca do querer de Deus na sua vida, interpelado pela realidade do momento, termina por fundar uma comunidade inserida num dos bairros sensíveis no norte de Marselha junto de imigrantes árabes.
Se dá num momento crucial da história de finais do século XX: desintegração do Império soviético, primeira guerra do Golfo, uma Europa cercada por países muçulmanos… e uma França confrontada com a dolorosa memória da “guerra suja” na Argélia que tem agora de fazer face a uma imigração cada vez mais visível, proveniente do Magrebe. A integração dos jovens de cultura muçulmana, a viverem nos bairros sociais, mostrava que a vizinhança com o Islão não era fácil nem evidente. Dos dois lados do Mediterrâneo, muita desconfiança e medo. “Infelizmente, conhecemo-nos tão pouco!” – Exclama num desabafo Henry. E continua: “O único desafio, consiste em sair desta coexistência infeliz de maneira pacífica. Porque a mundialização, com os seus aviões, as suas antenas parabólicas e a internet, acelera a mistura, a fusão das populações: hoje nas nossas cidades, as pessoas partilham os mesmos edifícios… eu penso de novo nessas realidades desconcertantes. Única tentação: ensinar francês às crianças muçulmanas de Marselha.
Sem domicílio fixo e sem ideias quanto ao futuro imediato (a pobreza radical) ele reza: ”sinto-me sereno e próximo de ti, Senhor, profundamente na Verdade. Eis-me liberto de uma tentação: a da ascensão para os “altos lugares espirituais”… Desçamos juntos, ao invés, mais baixo em direção aos homens! Não nos fiquemos pela borda do Céu! Empenhemo-nos, molhemo-nos, sujemo-nos: façamo-nos pecado pela salvação do mundo!”… O que eu quero é tornar-me semelhante a esse Deus, isto é, tornar “próximos” os pobres imigrantes dos subúrbios.


Também foi para mim impressionante o testemunho de uma grande mulher: Dorothy Day, falecida em 1980 e declarada oficialmente por João Paulo II “Serva de Deus”. Talvez a figura mais importante do catolicismo norte-americano do século XX. Também ela – mãe, avó, trabalhadora, revolucionária e profundamente religiosa – faz a sua experiência de Deus quando pisa a dura realidade dos pobres mais pobres. “Recebi, uma chamada, uma vocação, uma direção para a minha vida” era a direção da descida radical para os pobres…
Descobrindo que a grande massa dos pobres e os trabalhadores eram os católicos naquele país, ela passa aos 30 anos, do protestantismo ao catolicismo.
À medida que o tempo passa, vive a tensão entre a convicção de que a Igreja é a Igreja dos pobres e os escândalos que vê nela… e denuncia: “Há muita caridade mas muito pouca justiça” (La Larga Soledad, 50. Publicada em 1952). Aos 35 anos se pergunta sobre onde estava a liderança católica na tarefa de reunir homens e mulheres (LS, 177) É quando entra numa igreja e entre lágrimas e angústia, pede a Deus que lhe ajude a descobrir o modo de usar os seus talentos em favor dos seus companheiros trabalhadores, dos pobres (LS,178) (1933 1º número do jornal Catholic Worker e Primeira casa de hospitalidade para mendigos, desempregados, sem-abrigo e toxicodependentes com quem viverá até à morte).
Em 1942, durante a segunda guerra mundial, Dorothy Day é criticada pela sua posição pacifista e responde: “Deixemos os que falam de suavidade e sentimentalismo a que venham viver connosco nas casas frias e sem aquecimento dos subúrbios; deixemo-los que venham viver com os criminosos, doentes, alcoólicos, degradados, pervertidos (não eram os pobres decentes nem os pecadores decentes os receptores do amor de Cristo). Deixemo-los que venham viver com os ratos, os bichos, baratas, piolhos… Deixemos que a sua pele se congele de frio, apodreça pela sujidade, pelos bichos; deixemos que os seus olhos se mortifiquem ao verem excrementos humanos, membros mutilados… Deixemos que o seu olfato se atrofie pelo cheiro dos resíduos, a degradação, a carne apodrecida… sim esse cheiro a suor, sangue e lágrimas… Deixemos que os seus ouvidos fiquem ensurdecidos ao ouvir essas vozes ásperas, gritos da gente que entra e sai continuamente, vivendo aos montões e sem privacidade. Deixemos que o seu gosto se atrofie por essa comida insuficiente, cozinhada em grande quantidade para centenas de pessoas, esses pratos tão toscos, tanto, que o cheiro da comida é repugnante (“The Catholic Worker” (fevereiro de 1942).
E ainda a propósito da sua experiência na prisão, (a última das várias detenções foi aos seus 76 anos) escreve: “Entre gritos, assobios, ameaças dos guardas e de uns a outros, expressando-se desta maneira através das celas e corredores, eu, com o meu rosário na mão tentava rezar ao cair da noite… “Partilhava, como nunca o tinha feito antes, a vida dos mais pobres dos pobres, os culpados, os despossuídos”.
Quando em 1956 é arrastada durante uma ação não violenta, escreve: “Percebi uma sensação de intensa proximidade de Deus. Um grande sentido do Seu amor pelas Suas criaturas.
Não estaremos a falar de autênticas experiências de Deus? Estamos perante uma espiritualidade ausente de qualquer interpretação espiritualista, desencarnada ou intimista. (LS, 10).
Segundo o jesuíta, Daniel Izuzquiza, a melhor homenagem que recebeu Dorothy Day pela sua luta pela justiça através da não-violência ativa impulsionando a objeção fiscal ou a resistência ao pagamento de impostos, (porque era consciente de que uma percentagem significativa era dedicada a gastos militares), foi a recebida pelo Arcebispo Raymond Hunthausen de Seattl, animando os cidadãos a não pagar o 50 por cento dos seus impostos como protesto contra o gasto em armamento nuclear em 1981. (cf. Revolución desde Abajo. Descenso Revolucionário. La política espiritual de Dorothy Day, Daniel Izuzquiza, sj. Cuadernos CJ – 136).


Poderíamos continuar a narrar experiências de Deus de tantos homens e mulheres a começar pelos nossos mestres espirituais e fundadores.


Gostaria de referir um profeta dos nossos tempos, D. Pedro Casaldáliga, que aos seus 85 anos, é ainda ameaçado de morte. Também ele se converte ao Deus de Jesus, o Deus dos pobres, no contacto com a realidade do povo que sofre as injustiças. “Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar”, foi o lema por ele adotado para a sua atividade pastoral. Alvo de inúmeras ameaças de morte, cinco processos de expulsão durante a ditadura militar, ele apoia a revolta de Chiapas no México afirmando que quando o povo pega em armas deve ser respeitado e compreendido… O seu amor à liberdade inspirou a sua luta conta a centralização do governo da Igreja, afirmando que a Igreja deveria ser uma comunhão de igrejas. Merece ser lida a sua "Declaração de Amor à Revolução Total de Cuba" 1999.

Mesmo depois da renúncia e com a doença do Parkinson, não perdeu a combatividade e a franqueza, continuando a fazer afirmações muito ousadas quer a nível político que a nível eclesial. O bispo Pedro Casaldáliga, a princípios do último mês de Dezembro, aos seus 84 anos, foi forçado a deixar sua casa em São Félix do Araguaia (MT) e passar a viver escondido, a mais de mil quilómetros de distância por indicação da Polícia Federal. A causa foi a intensificação das ameaças de morte que ele recebeu devido ao seu trabalho durante mais de 40 anos em defesa dos direitos dos índios.


Impressionou-me ultimamente no filme “Aristides Mendes, o Cônsul de Bordéus” o modo como o contato deste diplomata, homem do poder - frio e duro - com a realidade chocante de tantos homens, mulheres e crianças, totalmente despossuídas de tudo, desgarradas das suas casas, família, abrigadas e instaladas aos montões nas sinagogas, se deixa confrontar por um rabino, entra em si, e no meio de uma forte crise de discernimento, toma a firme decisão de se colocar do lado dos mais frágeis, mesmo que para isso tenha que desobedecer. "A partir de agora, darei vistos a toda a gente, já não há nacionalidades, raça ou religião". Com a ajuda dos seus filhos e sobrinhos e do rabino Kruger, ele carimba passaportes, assina vistos, usando todas as folhas de papel disponíveis, cerca de 30 000 vistos. Confrontado com os primeiros avisos de Lisboa, ele terá dito: "Se há que desobedecer, prefiro que seja a uma ordem dos homens do que a uma ordem de Deus". Esta obediência a Deus e desobediência à sua suprema autoridade, lhe trouxe as consequências que já conhecemos: vem a ser destituído do seu cargo, fica proibido de exercer a sua profissão de advogado, e com uma família numerosa sobrevivem, graças à solidariedade da comunidade judaica de Lisboa.

A experiência de Deus, em Moisés, nos Profetas, em Jesus de Nazaré em todo o crente é sempre aquela que encarna o Amor de Deus cheio de ternura e misericórdia para com o mais pequeno, o mais frágil, o mais indecente pecador. Este é o Princípio e o Fundamento para toda a Obra Boa. Fazer a Experiência de Deus, o Deus de Jesus, não o Deus da criança segundo Freud! A experiência do SER AMADO/A vai traduzir-se em acolhimento incondicional, “Eu te amo assim como tu és e estás. Amor que não julga, não exige nada, simplesmente AMA. “Este é o meu filho muito amado”: Foi a forte experiência vivida por Jesus no Jordão onde multidões de gente excluída do sistema vigente, acorria para ouvir João Baptista. Esta experiência vai revolucionar a sua vida.

Seguir Jesus, nos exige passar da idolatria em que vivemos - de uma vida morna, sem significatividade, acomodada, mesmo entre a correria e o stress de tanto trabalho - para a fé.

Para a fé de Abraão, um processo de esvaziamento, de despojamento, que se traduz em desconcertos na vida, sofrimento, sensação de desorientação, fracasso, aceitando o desafio de passar o Jordão de sair para outras margens sem saber para onde… (Heb. 11,8-10) sem metas claras, sem projetos na cabeça ou no papel…

Na fé radical apenas sei que o Espírito me está a mover e vou para a frente.
Quando formamos para o ter tudo claro, com projetos bem definidos, para o ter sempre tudo controlado, então, não há despojamento, não há possibilidades de formação para criar um espírito de pobre, estaremos sim, a formar pessoas autosuficientes com a necessidade do poder sempre à flor da pele -e que tiram tanta vida, sobretudo àquelas pessoas mais frágeis, mais indefesas. Os formadores e formadoras, sendo eles e elas, homens e mulheres de fé, com muita ternura e paciência ajudam os formandos e formandas a caminhar na vida, no deserto, sem muletas. O nosso refúgio é só Deus.

Aqui poderia caber aquela sábia história oriental: Era um ateu que caminhando distraído, caiu na borda de um precipício… agarrou-se a um ramo mas não tinha como salvar-se. Largar o ramo seria a queda fatal no fundo do precipício. E recorre aflito a Deus em quem dizia não acreditar: Deus, Deus salva-me! Eu te prometo que passarei a acreditar em ti. Deus lhe responde: Eu te salvo! Mas tens que te soltar!

Nos atreveríamos a soltar-nos do ramo? Confiantes de que não cairíamos ao precipício?

(Comunicação - Curso de Formadores. CIRP
 Fátima 2013)






quarta-feira, 25 de setembro de 2013

REGRESSO AO ESSENCIAL

No tempo de Moisés, no tempo dos Profetas, no tempo de Jesus.

Quando a busca do poder não tem limites, são muitas as vítimas, se entra na espiral da violência e os gritos se fazem ouvir. Mas, muito boa gente não quer escutar. Os seus olhos ficam como vendados e os seus ouvidos ficam como surdos a tanto clamor: uma defesa contra o sentimento de impotência ou cumplicidade que nos fere, e incomoda, que nos faz mal e por isso se vão encontrando muitas e variadas formas de evitar ver e escutar.

Não foi assim com Moisés. Ele, provavelmente, com uma vida cómoda, com um futuro assegurado, de fácil acesso ao ter e ao poder, numa vida de Palácio, rompe os muros e repara na situação de escravatura a que estava submetido o seu povo; foi sensível, os seus olhos e o seu coração se abriram.
Moisés não aguentava continuar a ver tanta opressão, tanta injustiça contra os seus irmãos de raça.
Terá percebido que o uso da violência como forma de luta não era solução.
O seu retiro para os subúrbios, junto a uma comunidade seminómada, o seu contacto com os simples e os humildes vai-o conduzindo à descoberta da bondade, da ternura e misericórdia de Deus, o Deus único e verdadeiro.
Ao mesmo tempo que cresce no seu íntimo, a preocupação pelos seus irmãos. Um fogo, uma paixão pelo seu povo explorado, violentado, o abrasa. Passa a entrar Moisés num terreno sagrado: O seu povo tão fragilizado, é o povo de Deus. O Deus vivo e verdadeiro que lhe faz sentir que deve partir - não pela violência, não pela força -; deve partir para ser a Sua boca, os Seus pés, as Suas mãos.

Deus viu muito bem a miséria do Seu povo, viu a opressão com que os egípcios os atormentavam, ouviu o seu clamor contra os seus opressores e conhecia os seus sofrimentos e por isso os ia libertar. Mas precisava dele, do seu conhecimento, da sua capacidade de intervir. Contudo, só poderia intervir em seu nome. Seria Deus em Moisés a pensar, a descobrir estratégias, a agir. Fora d’Ele, tudo seria um fracasso.

E Moisés de um menino de Palácio, de um rebelde assassino, se transforma para os Judeus no grande Líder, no “servo de Deus” e “Pai de todos os Profetas”.

Se sucedem a Moisés tempos de democracia - ausente de um poder centralizado, totalitarista - com autonomia produtiva, sem impostos, propriedade de todos e para todos, leis comunitárias e uma fé viva no Deus Libertador. É o tempo dos Juízes: Josué, Débora, Baraque, Gedeão, Jefté, Sansão… (Jz 5: Cântico de Débora; Ex 20,1-21: Mandamentos; 20,22-23,9: Código da Aliança;  Sl 19,2-7;29; 68,82;136); Js 1-12; 23-24; Dt 31-34; Eclo 46; Ex 19-24; 32-34; Nm 31-36; Js 13-19; Jz 1-18).
Mas a tentação do ter, que dá poder, está sempre presente e com a opção pela Monarquia vem também a acumulação de poder e de terras, o aumento de contribuições, os trabalhos forçados, a resistência dos agricultores, guerras de conquista, cultos estrangeiros, crescente idolatria, decomposição moral e religiosa, divisão do Reino, injustiças, duros impostos, ameaça de países estrangeiros (Assíria), alianças políticas, sincretismo religioso, progressiva decadência, corrupção, desintegração de instituições, endividamento sem saída, ideologias justificadoras da opressão, destruição de cidades como Nínive e Jerusalém, deportações para o exílio onde passam a viver em subúrbios, trabalhos forçados, crise de identidade.

É nestes contextos que surgem os Profetas como Elias que enfrenta o sistema do Rei Acabe, Eliseu, Amós no Reino de Israel, cuja capital é Samaria. E em Judá, concretamente em Jerusalém, surge o grande Isaías, Sofonias e outros. Na grande crise de profunda decadência e desintegração, temos Jeremias, que denuncia fortemente as atitudes do Rei, profetiza contra a sua ganância, contra o esbanjamento de dinheiro em construções luxuosas (Jr 22,3.13-17. Atira-lhes em cara que só visa o lucro, que derrama o sangue do inocente e pratica a opressão e a violência. Também se torna, o Profeta, um adversário dos sacerdotes de Jerusalém porque condena a superestima do culto e do templo (Jer 7,3-15.21.26), ele mostra que a Aliança com Deus é muito mais ampla e comprometedora do que o simples cumprimento das prescrições e leis do culto. Além da fidelidade a Javé, trás consigo o compromisso de solidariedade com os irmãos (Jr 7, 21-28).

Os verdadeiros profetas, são homens e mulheres de Deus que não temem denunciar claramente os grupos dominantes da sociedade do tempo:
Autoridades, magistrados, latifundiários, políticos. Chegam a ser duros, irónicos. Porque, um fogo os queima e todas as energias estão na defesa apaixonante dos órfãos, das viúvas, dos oprimidos, do povo explorado e desgovernado pelos governantes. Não temem igualmente denunciar a máscara da religião que encobre a injustiça (Is 3,16-24; Am 4,1-3; Is 1, 10-20; Am 2, 6-16; 4, 4-5; 5, 21-27). Daí as ameaças de morte, os açoites e a prisão… (Jr 19, 14-20; 16,11; 37,15-16; 37,15-17; 38,4-6).
Todos eles vivem uma profunda experiência de Deus, não de um deus qualquer, mas de Javé, o Deus que está no meio do povo, o Deus libertador, o Deus vivo e verdadeiro, todos eles vivem uma experiência profunda da realidade do povo, do povo de Deus, os pobres, os oprimidos, os marginalizados. A presença de pessoas ou grupos marginalizados era o sinal de que algo estava errado… é conhecida a expressão de Dt 15, 4 e 7: “Entre vós não pode haver pobres, nem mesmo um só”.

A sua ação, que brotava da sua experiência de Deus e da Realidade, era clara e visava três frentes: a mudança de estruturas injustas, a transformação da sociedade denunciando com claridade as injustiças e apontando as causas - pelas suas denúncias procuram criar novas leis como a lei do Ano Jubilar que pretendia criar uma estrutura agrária mais justa; a mudança nas relações, a renovação da comunidade através do caminho da solidariedade: … mas como não faltam indigentes na terra… eu te ordeno “Abre a tua mão em favor do teu irmão, do teu pobre e do teu indigente em tua terra… pois no meio de ti não haverá nenhum pobre” (Dt 15, 11.4); a mudança no modo de pensar, o grande desafio do profeta: recrear a consciência.
Porque, no dizer de Carlos Mesters, a injustiça básica é a consciência roubada dos pobres. A eles lhes foi imposta uma consciência de inferioridade. O sistema injusto dos reis fez do pobre um ser inferior, um preguiçoso, um pecador que não merecia vida melhor que aquela que tinha, ele, o pobre, era o único culpado da sua pobreza. O pobre, assim desumanizado, não encontra saída, já nada tem a perder… já não existe a confiança… não adiante mais continuar a gritar pedindo ao rico ajuda.
É aqui que cabe a voz do profeta que não apenas denuncia as injustiças e os erros, não só estimula o povo para a solidariedade, mas também e sobretudo, anuncia a certeza central da fé: “Deus está no nosso meio! Ele ouve o nosso grito!” E o povo motivado pelos profetas passa a gritar para Deus porque agora sabe que Deus escuta o seu clamor (Ex 6,2-8; 3, 7-15) É desta certeza de que Deus está com ele, e que o ama que nasce no pobre uma nova consciência de gente, de filho de Deus, consciência da sua própria dignidade e missão. É como uma nova criação que quebra o círculo vicioso da ideologia dominante (Cf Gl 6,15; 2Cor 5,17).
São três caminhos num só, porque Justiça sem solidariedade e sem mística, torna-se mera ação política; Solidariedade sem Justiça e sem Mística torna-se mera filantropia e Mística sem justiça e sem solidariedade, torna-se piedade alienante.

Jesus de Nazaré, no tempo de Herodes Antipas, vive uma realidade idêntica à de anteriores profetas, quer a nível social, quer a nível político e religioso. Socialmente se verificam os grandes contrastes sociais, latifúndios, exploração dos trabalhadores, contribuições sempre a subirem, marginalização, exportação de alimentos: fome, confusão do povo, insurreições, revolta…

Ele, Jesus, como os verdadeiros profetas de Israel, não faz parte da estrutura política nem do sistema religioso. Não é nomeado por nenhum poder. A sua autoridade não lhe vem da instituição, não se baseia nas tradições religiosas. Provém da sua experiência de um Deus empenhado em conduzir os seus filhos e filhas pelos caminhos da justiça.
Na Galileia, Herodes Antipas e os poderosos de Séforis e Tiberíades exploram os campesinos das aldeias, sem ter consciência de estar a tirar o pão aos pobres. Por outro lado, há muito tempo que os dirigentes religiosos de Jerusalém se desentenderam do sofrimento das populações. Não se sabe como, nem de onde; poderia brotar uma esperança para os pobres e para essa sociedade indiferente que os abandona à sua sorte.



E a primeira coisa que Jesus vai fazer, tal como fizeram os autênticos profetas, é romper esse mundo fechado introduzindo uma novidade. “Deus, já está aqui com a sua força criadora de justiça… já está a abrir caminhos entre nós para humanizar a história”. O mundo querido por Deus vai mais além da tirania do Império e mais além do estabelecido pela religião do Templo. 
Segundo o teólogo António Pagola, se pode dizer que Jesus irrompe na história como uma chamada a viver de maneira alternativa experimentando a Deus, Mistério último da vida, como uma Força que nos está atraindo para um mundo mais humano e mais ditoso. 

Jesus capta e vive a realidade insondável de Deus como um mistério de compaixão. É precisamente esta compaixão de Deus a que atrai Jesus para a vítimas inocentes: os maltratados pela vida ou pelas injustiças dos poderosos. É a compaixão de Deus a que torna Jesus tão sensível ao sofrimento e à humilhação da gente. A Sua paixão pelo Deus da compaixão traduz-se em compaixão pelo ser humano.

Hoje estamos submersos talvez na maior crise da história, porque a natureza também está ferida de morte e o capitalismo selvagem está afetando todo o planeta. Somos testemunhas das mesmas injustiças, guerras, violências, gritos de dor, fome, doença, desespero, destruição. Recordo muitas vezes, na minha inesquecível ida a um país africano, o ter visto grandes extensões de terreno cercado, moradias de luxo, grandes condomínios fechados… e ao mesmo tempo famílias, multidões, em condições sub-humanas sem um palmo de terra. Entrei em casas, escutei silêncios de homens mutilados, cegos… e muitas mulheres, confessando a sua pobreza e dizendo irem ao lixo buscar o que outros deitam fora, que não podem trabalhar a terra, porque a não têm e comprar é muito caro, que carregam de longe a água porque os homens não se unem para abrirem um poço comunitário…Ai daqueles que juntam casa com casa e emendam campo a campo, até que não sobre mais espaço e sejam os únicos a habitarem no meio do país”. (5,8).
Mas, não precisamos de ir tão longe. Convivo todos os dias num bairro municipal – ilha rodeada de prédios de luxo - com cerca de 800 famílias, onde muitas se vão progressivamente deteriorando, porque as suas necessidades básicas não estão asseguradas, a luta pela subsistência, no meio da rejeição, da indiferença, do abandono, tem vindo a gerar um maior empobrecimento ao nível dos valores: a desconfiança, a desilusão, a mentira, o roubo, a violência em casa e fora dela. Realidades que contrastam excessivamente com as imensas famílias que habitam os prédios de luxo e os condomínios fechados do outro lado da estrada.
Quando deste lado não tens o necessário para viver uma vida digna e do outro lado vês uma piscina para cada prédio, um Ferrari que passa e excita as crianças que a gritos brincam no jardim, grades de ferro que resguardam os moradores e a presença de seguranças… muitos sentimentos perpassam pelas mentes dos dois lados: a desconfiança de um lado e a revolta do outro.

Há dias aceitei o convite da OC (Obra Católica) para um almoço e debate juntamente com os sem casa ou em risco eminente de ficarem sem ela, devido à inesperada demolição das barracas no bairro de Santa Filomena. Percorri o bairro, reparei nas casas/barracas sem condições, nas pessoas em cujos rostos se viam as marcas de muita dor e privações, crianças em dia de chuva e frio mal vestidas, conheci a Dona Branca cozinhando torresmos na rua, o seu ganha-pão e a sorte de muitos que na hora do seu almoço por 40 cêntimos compravam a deliciosa refeição. Esta mulher, sem marido e sete filhos, também ela, espera pelo dia em que ficará sem casa e sem direito a um realojamento… Mas como vai resolver? – Perguntei-lhe – “Eu não sei mas Deus é Pai, Deus é Pai…” eu me perguntava: onde estão profetas como o Isaías que denuncia o comportamento dos ricos e latifundiários, dos que vivem em grandes festas custeadas pelo trabalho dos pobres, dos que exploram o povo negando-lhes a justiça e dos que se fazem grandes e importantes vivendo em grandes banquetes (5, 8-24)? E percebi que no meio do povo, havia gente jovem, predominantemente mulheres, implicadas na defesa destes imigrantes; respondiam com serenidade às nossas perguntas. Elas manifestavam indignação por um governo que mentia perante a ONU, uma câmara Municipal que se fechava ao diálogo, e ainda a queixa do pároco que também fechava o seu coração dizendo que nada tinha a ver com isso. Dizia ser injusto que pessoas nascidas desde há 22 anos não tenham direito a um teto. Conhecendo caso a caso, elas sabiam da situação degradante destas pessoas e famílias. Era urgente intervir…

As crises, são tempos privilegiados para um chamamento a viver o essencial. E são muitas hoje as experiências e os apelos a este retorno: Temos o caso da Comunidade de TAMERA no Alentejo, um centro internacional de pesquisa para a Paz fundado em 95, cerca de 150 pessoas de várias nacionalidades a viverem um estilo de vida alternativo onde estão presentes a dimensão ecológica, a dimensão espiritual, humana e da solidariedade. Para reforçar os laços comunitários, os habitantes de Tamera começam o dia com uma dança ao ar livre e uma sessão espiritual, em que todos, sentados em círculo, podem exteriorizar sentimentos, pondo de parte eventuais intrigas e cimentando o espírito de entreajuda. As portas das casas não se trancam e os forasteiros são recebidos sempre com um sorriso e uma mão estendida. À hora das refeições, agarram-se as mãos em jeito de agradecimento pela comida que a terra lhes dá.
Também no Alentejo uma família alemã da “Ilha do paraíso” crudívora vive uma ecologia radical onde só vigoram as leis de Deus e da Natureza;

Marinaleda em Espanha onde há pouco, o famoso carismático Presidente da Câmara apareceu na TV a falar das suas práticas gandihianas de não-violência-ativa contra a difícil situação da Andaluzia. Falou com muita clareza, mostrando a hipocrisia deste sistema que temos.  

Formar hoje exige a implicação nas realidades onde se dá a demissão dos responsáveis entregando as vítimas do sistema à sua própria sorte. Formar hoje implica saber permanecer sempre com o olhar e o coração na realidade e ao mesmo tempo na Palavra de Deus contextualizada. Formar hoje implica abrir-se ao novo, ao diferente.
JULIA BARROSO- Comunicação Curso de Formadores - CIRP.
 Fátima  2013)

domingo, 11 de dezembro de 2011

ESPAÇO ABERTO

Começou há sete anos a vivência de comunidade inserida, com uma opção real e radical pel@s excluíd@s do sistema, onde a experiência de mesa compartida tem sido uma realidade desde o primeiro momento.
Das entranhas de misericórdia, da pequenina comunidade Teresiana -actualmente composta pelas irmãs Amélia Martins, Angelina Pedrosa e Julia Barroso- foi-se gerando uma forma de ser e estar, que aos poucos foi criando uma imensa família composta também pel@s vizinh@s, voluntári@s e tod@s os que aparecem de coração aberto e dispost@s a embarcar nesta aventura libertadora.
Pela necessidade de um espaço que fosse um ponto de encontro, onde se congregassem as diversas atividades educativas surgiu o ESPAÇO ABERTO.
Um espaço, sim, ABERTO ao DIFERENTE!
Um LUGAR de ENCONTRO entre diferentes culturas, raças, credos, condições de vida.
Um LUGAR SAGRADO onde se podem tocar a TERNURA e a MISERICÓRDIA.
Onde o TOCAR e DEIXAR-SE TOCAR pela REALIDADE faz toda a diferença…que faz BROTAR o SONHO, multiplica SINERGIAS e onde se dão pequeninas mudanças que são imensamente GRANDES…
O nosso Bairro Fonsecas e Calçada – Telheiras Sul é uma pequena ILHA. Habitado por pessoas maravilhosas com um passado, uma história que as colocou fora do sistema e estão na MARGEM, na FRONTEIRA. Somos BORDERLINES, estamos no limite… nos separa de outra realidade, de outro mundo, apenas uma estrada…
Enquanto deste lado da estrada, muit@s já estamos cansad@s, desgastad@s de uma luta pela sobrevivência -, muitos braços foram caindo, muitas ruturas se foram dando, muitas doenças se foram de nós apoderando… porque a esperança se foi perdendo e nos vão restando esmolas, difíceis de conseguir, mas não passam de esmolas -, … do outro lado, basta olhar pela janela e ver, o outro mundo. O daqueles que apenas nos olham com desconfiança e se protegem nos seus condomínios fechados, tal como na Idade Média se protegiam os senhores nos castelos rodeados de muralhas.
O contraste é tão grande! Nos faz pensar, questionar… mas nós… não temos pontes que nos façam passar para o outro lado. Somos Borderlines, estamos no limite… só nos pode ver bem quem vir com o coração….
E esses são muit@s, alguns, algumas.
Alguns, algumas que como um tal “Jesus de Nazaré”, se retiram para as Margens, tocam e se deixam tocar pela realidade… e, com o seu tocar, provocam “milagres”. Já não somos apenas as irmãs. A pequenina comunidade teresiana, inserida têm consigo e do seu lado pessoas casadas, solteiras, jovens e adultos de diferentes, credos, culturas. Com elas se abrem horizontes de esperança… Reparemos em alguns gestos que marcam a diferença. Apenas os últimos.
IMPLICAR-SE!
Os Voluntários com Asas, um grupo de adolescentes e a Irmã Julia, arregaçaram as mangas e IMPLICARAM os moradores do Prédio nº 12 (10 andares) na pintura das escadas e patamares. IMPLICAÇÃO, EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA in loco. ´

DEIXAR-SE TOCAR!
A Marisa Alves deixou-se tocar e permanece coerente, ativa, cheia de garra. Por ela se deu a educação para a higiene pessoal motivada por produtos recolhidos na TAP. Assim como vários lanches. Utilizando as suas redes sociais ela angariou alguns fundos para os Campos de Férias no verão.
Os Campos de Férias de Verão têm sido uma mais-valia… Realizou-se a 4ª edição graças à audácia do Artista Vítor Roriz que acredita nos projetos não institucionalizados, não burocratizados. Ele convoca outros voluntários… que de modo admirável acedem e juntos proporcionam a bastantes jovens do nosso bairro experiências únicas. 2011, em Verim com o Advogado Sérgio Moura a coordenar o Campo foi mais uma aventura.
A comunidade teresiana ali inserida foi encantadora. Soube acolher com carinho, foi solícita em todos os momentos, partilhou com generosidade os seus bens, soube captar o valor destes jovens formadores e formandos. Obrigada, irmãs!
O nosso amigo e adolescente Leandro está feliz porque, tendo uma paralisia cerebral afetado os membros inferiores, só agora aos 13 anos pode fazer fisioterapia numa piscina … e porquê? A Marisa conseguiu mover amigos que estão a fazer o que ninguém mais podia ou queria fazer… As suas redes sociais são utilizadas para convocar outr@s voluntári@s, apelar à partilha…

PARTILHAR AFETOS
A Sónia Malaquias respondeu… o seu empenho, a sua filosofia de vida, a sua forma de estar entre crianças e adultos estão a deixar marcas… Criar laços, oferecer afeto. Como psicóloga e professora de Thai Chi ela está a criar um grupo de mulheres e outro de crianças…

PERSISTÊNCIA!
OS JSF (Jovens Sem Fronteiras) têm sido empenhados e tentam sempre novas experiências com as crianças mais pequenas… Uma vez por semana se fazem presentes: educando, promovendo festas, e preparando com muito esmero e carinho o CABAZ de NATAL.

SORRISO FELIZ!
A Alexandra dos JSF foi a promotora do projeto “sorriso feliz”. Das 24 crianças observadas, com dentição permanente, apenas 5 estão livres de cáries dentárias. Os resultados obtidos foram preocupantes, pois a meta da OMS (Organização Mundial de Saúde) para a saúde oral é que em 2020 80% das crianças de 6 anos esteja livre de cáries, e que aos 12 anos o CPO (cariados, perdidos e obturados) não seja superior a 1,5%. Os resultados revelaram que aos 8 anos, apenas 20,83% das crianças estão livres de cáries e já apresentam um CPO de 4,5%. Mas, e agora? Quem vai resolver? É isso… quem pisa esta terra sagrada: a das crianças desprotegidas e desafia o seu dentista… e desafia a que outros desafiem… E já estamos em processo. Os mais graves já estão nas mãos do dentista da Marisa, homem sensível que partilha os seus bens deste modo. OUTR@S estão esperando…
Mas não apenas as crianças… muitas mulheres com medo de sorrir… e … não porque o Sistema de Saúde estivesse à altura, ou porque as Instituições de solidariedade, saindo dos seus gabinetes reparassem nos seus rostos e lessem a sua falta de auto-estima, várias já hoje podem sorrir… Outras ainda estão esperando que alguém repare…

LENTOS E LONGOS PROCESSOS EDUCATIVOS…
O Espaço Aberto, acolhe todos os dias bastantes crianças e adolescentes… um espaço livre… onde o respeito e a boa relação entre culturas são o desafio de acompanhantes e acompanhados… Um espaço querido por todos… Porque as atividades educativas, o lazer, a internet, também o estudo, são acompanhadas de ternura, afeto, educação. São as irmãs Angelina e Júlia, as que dia-a-dia sustentam e tornam consistentes os processos educativos baseados no respeito, na contenção de limites, nas regras da boa educação, no desenvolvimento de competências manuais, da imaginação e do diálogo.

RELAÇÕES NOVAS: DA EXCLUSÃO À INCLUSÃO
É lindo ver voluntárias como a Milé e a Fátima Veiga dedicarem uma tarde semanal para tirarem dúvidas escolares aos mais velhos… apesar do seu cansaço após um dia de trabalho… ali estão… se não podem dar matérias escolares, elas dão ternura, carinho, RELAÇÕES NOVAS…
São 39 crianças e adolescentes… integradas em atividades, grupos. Um projeto sem “projeto”. Ou seja sem dinheiro nem burocracias… mas é sim um lento e longo processo educativo: da exclusão à inclusão. Gerador de vida…

GRUPO DOS REBELDES
O MAC (Movimento de Crianças e Adolescentes) Um movimento de cariz católico baseado na metodologia do Ver, Julgar e Agir. Graças à persistência do Emanuel Valadão e o apoio incondicional da irmã Julia, este grupo já é um “grupo”, dinâmico e rebelde. Outro está a surgir… um casal, a Ana e o João estão a acompanhar…

CUIDAR A VIDA!
Cuidar! Implicar-se com as pessoas e as coisas, dar-lhes atenção, colocar-se junto a elas, compreendê-las e valorizá-las a partir de dentro. Cuidamos o que amamos, responsabilizamo-nos porque nos vinculamos… A irmã Amélia acolhe, escuta, transmite o valor da laboriosidade, da entrega sem limites…

VER, JULGAR E AGIR: PROCESSO EM CONSTANTE REVISÃO
Quando se acolhe a vida de braços e coração abertos, sempre se corre o risco da busca da solução imediata. Por isso, na nossa forma de ser e estar é necessária uma avaliação constante, que nos permita simultaneamente responder às necessidades da gente do bairro e ao mesmo tempo não nos deslocarmos do essencial da nossa presença baseada no Evangelho e no carisma educativo teresiano.
Para além dos tempos fortes de oração e discernimento comunitários, também aqui contamos com o olhar crítico da Ana, que desde a sua experiência como consultora de projetos sociais, embora muitas vezes à distância (via net), nos ajuda com a sua exigência teopraxica e a sua crítica construtiva.

UMA NOVA TERRA
Acreditamos, que com os nossos pequenos gestos ajudamos a construir uma nova terra, a passar dum sistema gerador de exclusão a processos inclusivos e geradores de vida.
Temos a humildade de perceber que são apenas pequenos espaços num enorme mundo de injustiça. Mas também temos a certeza que muitos pequenos gestos como os nossos podem fazer a diferença para a construção dum mundo mais justo e mais fraterno.

Julia Barroso STJ e Ana Valadas


sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

NUM BECO SEM SAÍDA? ACREDITA EM MILAGRES?

Num beco sem saída. Pareceria. Tudo para aí apontava… Das barracas às caixas de fósforos, para ali transplantados -ficando limpa a cidade - para ali. Em altura. Mais de uma centena de escadas é preciso subir sempre que os elevadores emperram, e isso acontece frequentemente porque ninguém ensinou, e outros não querem aprender a usar meio de locomoção tão divertido. Também a empresa gestora – à procura de lucro - bem depressa se deu conta que dali não viria a beneficiar - e sabiam os moradores que estes elevadores eram em segunda mão. Já não respondiam sem grande pressão. Os nervos subiam à cabeça e as portas e paredes sofriam os pontapés. Impulsos de pequenos inconscientes. Impulsos, de grandes já estafados no regresso do trabalho e sobretudo indignados com os que podem mas não querem.
E como antes ao ar livre tudo era permitido. Agora. Com hábitos já tão incorporados, como evitar que as escadas e paredes não sofram o desrespeito e apanhem com o sujo que se vai acumulando? E como o diálogo e o confronto positivo também se não tinham aprendido nem na escola nem na família… muitos se queixavam e tantos se negavam a limpar o que outros iram sujar… e a degradação ia sendo maior…
Unida ao escuro nojento das paredes e escadas… a falta de luzes… porque a carência ou a indecência de alguns lhes fazia retirar as lâmpadas, interruptores, ou as puxadas da luz porque no final do mês não há guita para pagar as contas…
E as entradas de portas arrombadas feitas às vezes contentor do lixo… são recantos favoráveis a pequenos grupos marginais aí encontrarem um espaço para aquilo que só no escuro e em plena noite enquanto o sono da maioria é profundo.
O que antes havia de vizinhança, proximidade, família agora para muito se tornou um exílio, sofrendo a separação e o isolamento. Para os velhos e sós, a solidão em altura, a prisão domiciliária.
A ausência de respostas esclarecidas e em tempo minimamente razoável. É tão indignante, desmoralizado que continua a gerar desmotivação, doença, alcoolismo, promiscuidade, vandalismo, deterioração, abandono, perda dos filhos, a progressiva degradação… a vinda aí de maior violência - não apenas ou tanto dentro do bairro, porque a busca, aparentemente mais fácil, da sobrevivência dá-se mais pela noite e longe da vizinhança e familiares - a falta de respostas por parte dos “serviços” as equipas multidisciplinares (psicólogo, assistente social, técnicos…)- que quer da empresa GEBALIS que continua a demonstrar incapacidade de resposta, quer da Santa Casa que em Lisboa se aliou ao Estado, quer dos Centros Socais, ou qualquer outro projecto - não podem as técnicas/os de serviço, mostrar a sua humanidade, elas, eles.
Mas, as sementes do Verbo estão aí. E surgem pequenos gestos, gestos gratuitos que podem fazer toda a diferença; de um simples “bom dia” ou “boa tarde”, de um sorriso sincero, de um pedido de ajuda e pronta resposta… de alguém que aparentemente sem ter porquê limpa o que outros sujam, e novas relações positivas começam lentamente a circular… os bens de uns para os outros também. Há espaços degradados que entre muitos se recuperam. E se transformam em espaços educativos. Um projecto, desses que não é institucionalizado que contam com a riqueza de homens e mulheres, pessoas extraordinárias que de forma espontânea e gratuita dão um pouco do seu tempo. De vizinhos e vizinhas que generosamente também partilham dos seus bens e dão-se os pequenos/grandes milagres, acontece aquilo em que nos custa acreditar. Num prédio de cerca de 40 famílias, sem ruído de orçamentos, dinheiros, reuniões, meios de comunicação… se vêm quase todos de uma ou outra forma, juntamente com Voluntários, a pintarem o seu patamar e escadas. Os gestos multiplicam-se. Uns oferecem um café. Outros, um vinho do Porto. Algumas mulheres cozinham uma feijoada. No final, são sobretudo as crianças e adolescentes, as que agradecem um almoço diferente. Elas, as crianças, foram as que provocaram este pequeno/grande milagre. Elas fizeram uma experiência e provocaram alguns moradores que não resistiram e com elas pintaram o seu espaço.
Espaço que não era o destas crianças.

Julia Barroso

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

ESTA TERRA SAGRADA QUE EU PISEI

“Descalça-te, porque a terra que pisas é sagrada…”

Eu descalcei-me e toquei esta terra sagrada que me falou, me tocou e me gritou.
Falaram-me as extensas planícies e as altas montanhas, a terra vermelha como o fogo e o verde de uma vegetação selvagem. Falaram-me os milenares Baobás, cheios de encanto e de mistério, majestosos e fecundos, com todo o seu poder para curar, abrigar, proteger, inspirar…. As Welwitschias do deserto, que por mil anos a tudo resistem. Falaram-me fortemente da capacidade de resistência de um povo, tão visível nas mulheres em contínua luta pela sobrevivência. Falou-me o batuque da necessidade de alerta. Ele está aí como um símbolo para despertar as consciências adormecidas e manipuladas. Ele está aí com o seu poder de convocação, de anúncio, de festa.
Tocaram-me e toquei os frutos tropicais pendentes dos seus ramos… sob a terra fértil ou já nos mercados, artisticamente em recipientes colocados, o seu colorido a condizer com os trajes multicolores das mulheres negras e magras, carregando às costas os seus filhos, e à cabeça, o fruto do seu trabalho na lavra, ou a água em algum poço longe colhida… Senti as águas quentes do mar. Extasiou-me o Miradouro da Lua, uma maravilha esculpida pela natureza ao longo de milénios. Impressionou-me o silêncio da montanha. Ali no Soco, o isolado convento das monjas trapistas acolhendo quem chega para orar ou descansar.
Tocaram-me tantas e tantas crianças nas ruas brincando, jovens debaixo de árvores sentados ou mesmo caminhando a reler a matéria que o professor ensinou, enquanto outros entre o infernal trânsito na cidade lutando pela sobrevivência de muitas e variadas formas. Deixei-me tocar pelo testemunho de mulheres, pelo sorriso de crianças, por olhares tristes de jovens mães. Quis ler o gesto de agradecimento, que crianças e adultos assumem, quando apenas ao passares lhes dizes “bom dia” ou “boa tarde”.
Emocionaram-me as celebrações, as festas litúrgicas e profanas… Comoveram-me mulheres de fé acorrendo ao santuário de S. José de Kalungo a confessar as suas mágoas e a suplicar…
Foi importante, eu sentir-me entre as lavadeiras no rio Cunene ou conversando com os homens, que saiam dos barcos trazendo a produção do coqueiro: refresco pela manhã e bebida alcoólica pela tarde. Incrível a experiência ao percorrer os mercados… comprei fuba, mandioca e ananás… participei em actos culturais da aldeia… onde fui tão acolhida, apesar de desconhecida… entrei em salas de aula e li os olhares de tantas crianças e adolescentes, falei-lhes ao coração… escutei os seus gestos e expressões…
Pisei a terra sagrada de bairros periféricos onde a pobreza extrema é um grito, mas que ainda se não faz ouvir, porque todavia está viva a memória de uma guerra, que deixou marcas que só o tempo irá curar. Entrei em casas, escutei gritos de homens mutilados, cegos… e das suas mulheres, que confessam a sua pobreza e dizem irem ao lixo buscar o que outros deitam fora… que não podem trabalhar a terra, porque a não têm e comprar é muito caro, que carregam de longe a água porque os homens não se unem para abrirem um poço comunitário…
O maior grito, aquele dos contrastes: deste lado do mar… pescadores, mulheres que secam o peixe, barqueiros que fazem a travessia, … ali junto, o museu da escravatura a assinalar esse lugar, essa terra, que foi tristemente pisada por opressores e oprimidos… ali se baptizavam os escravos e dali partiam sem saberem para onde… forçados a deixarem a sua terra, a sua família e a sua cultura e passarem a ser propriedade de outrem sem direitos nem dignidade… ali o humilde museu a testemunhar uma história que não deve ser esquecida. Do outro lado a belíssima ilha turística – paradisíaca, um jardim de Palmeiras e coqueiros, casas/palácio de senhores e doutores, também lá mais retirado, pequenas casinhas abrigando pais e filhos… Emocionou-me uma capela - da Senhora do Mar - a servir de escola… uma turma de muito alunos, que prestavam prova escrita, os joelhos eram a sua mesa para escrever… que ironia…
De um lado, palácios, embaixadas, condomínios fechados, grande e luxuosos prédios… de outro os milhares de habitações coladas umas às outras, sem divisões, nem saneamento, nem água nem luz… tantas estradas de terra batida, que com as chuvas se tornam lagos e lamaçal… viveiros de mosquitos, que infectados disseminam tantas vidas. Ainda pude ver escolas debaixo de embondeiros ou em edifícios destruídos pela guerra e algum hospital, que choca excessivamente pela sua extrema pobreza. Sem o mínimo de condições… gente passivamente esperando… Aqui, em Angola onde tanta gente é maltratada e o seu Presidente é o segundo homem mais rico do mundo… é preciso intervir…
“O Mosaico” é um desses projectos, que sabiamente está a intervir… com base nos Direitos Humanos, busca despertar consciências, orientar na linha da justiça, da reconciliação e da paz.
Senti-me família, entre irmãs, as manas… aquelas que há muito anos conheci e agora revi, outras amigas, com quem partilhei a vida em momentos fortes… tantas conhecidas… todas acolhedoras, abertas, em família… Para elas eu abri o meu coração e deixei que ele falasse. Senti vida, inquietação, empenho, missão educativa… também dificuldades, sofrimento, lutas, delicadeza, carinho e fraternidade. Guardei a experiência de comunidades em missão, desde aquelas grandes que atraem voluntariado estrangeiro a outras tão simples lá no interior na comunidade de Menongue, onde senti que ali algo de novo surgia. Agradeço o grande dom de me ter sido oferecida a oportunidade de visitar África, uma terra sagrada que eu pisei.

Julia Barroso